quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Pela lógica empresarial dele, se os vietnamitas vissem diariamente os números de mortos comparados com os americanos, perceberiam que estavam perdidos.

Lucas Mendes Campos nasceu em Belo Horizonte, é jornalista e apresentador de televisão, fez carreira no Rio de Janeiro, tornou-se correspondente em Nova York onde reside atualmente.
No meio da entrevista, o veterano do Vietnã foi atrás do enorme alto-falante, tirou um maço de Marlboro, abriu e nos ofereceu. Meu colega, da revista Stern, e eu acendemos os cigarros e levamos um susto. Pelo maço ou pelo cigarro, era impossível distinguir. Maconha vietnamita. Para um primário como eu, parecia da melhor qualidade e potência. Isto foi em 71 ou 72.
A entrevista foi inútil e não por culpa da maconha. Os depoimentos do veterano que mais tarde se tornou amigo íntimo e professor de vinho - era um provador profissional - não tinham sido testemunhados por ele. Não estava envolvido em combate. As histórias pavorosas foram contadas a ele por outros soldados que participaram e viram chacinas no chão ou dos helicópteros: "fuzilavam tudo que mexia", conforme ordens dos comandantes.
Um dos massacres mais chocantes foi o de My Lai, onde entre 347 e 504 vietnamitas, na maioria crianças, mulhers e velhos, foram fuzilados por soldados do Exército americano comandados por um tenente, William Calley. O jornalista que levantou a história, Seymour Hersh, bateu de porta em porta na grande imprensa. Rejeição em massa. Quem teve coragem de publicar a matéria foi uma nova e ainda obscura agência de notícias, Dispatch News Service - 32 jornais publicaram. Uma bomba.
Houve até punições, mas a máquina de propaganda do Exército era poderosa. O massacre, na versão oficial, foi uma atrocidade isolada: "Infelizmente, acontecem".
Nick Turse, escritor e jornalista, quase por acaso, tropeçou em uma coleção de documentos no porão do Arquivo Nacional. Eram casos encerrados. Na época, ele era um estudante escrevendo uma tese de pós-graduação sobre o Vietnã e já estava na página 200 quando encontrou as pastas. Todo dinheiro que tinha, mais o que o professor deu a ele, gastou copiando páginas às pressas. Dormia no carro no estacionamento, era o primeiro a entrar e o último a sair, com medo que fossem recolhidas. E sumiram das estantes quando publicou o primeiro artigo.
O resultado é o livro Kill Anything That Moves: The Real American War in Vietnam. Enquanto o país ainda está chocado com as cenas de tortura do filme Zero Dark Thirty (no Brasil, A Hora Mais Escura) e debate se os Estados Unidos perderam a liderança moral no mundo, a história da desumana crueldade americana no Vietnã é uma leitura repugnante que Hollywood jamais vai colocar nas telas.
A estratégia, ditada pelo secretário (de Defesa, Robert) McNamara, era a "contagem de corpos". Continue lendo...
Pela lógica empresarial dele, se os vietnamitas vissem diariamente os números de mortos comparados com os americanos, perceberiam que estavam perdidos.
Para o secretário americano, quanto maior o número, melhor. Um comandante no Delta do Mekong era o campeão da contagem. Seus comandados saíam de helicópteros e sobrevoavam as plantações de arroz cheias de camponeses nas colheitas. Os helicópteros baixavam até apavorar os vietnamitas que corriam em busca de abrigos. Eram metralhados com a justificativa: "guerrilheiro tentou ação evasiva". Mexia, morria.
No final do dia, centenas de vietnamitas mortos. Armas capturadas: uma dúzia.
A matança de civis deixou mais de 2 milhões de mortos, 5,3 milhões de feridos, 11 milhões de refugiados e mais de 4 milhões expostos ao agente tóxico desfolhador laranja.
Dezenas de americanos denunciariam a violência e centenas foram investigados pelo Exército, mas arquivados. Foram as pastas que Nick Turse encontrou no porão.
Quase na mesma semana do lançamento do livro sobre a violência e o fracasso americano no Vietnã, foi lançado The Insurgents: David Petraeus and the Plot to Change the American Way of War, do escritor e jornalista Fred Kaplan, que escreve a coluna War Stories para o siteSlate.
O foco é no general hoje em desgraça por conduta imoral quando dirigia a CIA e teve um affair com uma biógrafa. Kaplan acompanha o general da guerra na Bósnia, as guerras do Iraque e Afeganistão. Enquanto os americanos enfrentavam insurreições diárias em quase todo país, o território comandado por Petraeus, um dos mais perigosos, estava pacificado e próspero. Ele reabriu as escolas, a universidade e a fronteira com a Síria. A população apoiava o Exército e apontava os terroristas.
Mais tarde, no comando de toda a operação no Iraque, teve resultados excepcionais que permitiram a saída dos americanos, mas a situação já voltou à instabilidade. Petraeus estava conseguindo resultados parecidos no Afeganistão quando foi chamado de volta para dirigir a CIA.
A fórmula dele, ao contrário dos americanos no Vietnã e nos primeiros anos no Iraque, não era capturar e/ou matar insurgentes. O importante era mudar as condições sociais, o que agora se chama "nation building", construir nação, que exige sensibilidade cultural, convivência com as pessoas no território ocupado, proteção e conquista da confiança da população. Os comandantes que sucederam Petraeus não tiveram o mesmo talento de liderança e administração. O futuro é incerto e perigoso nos dois países.
Como em todas situações de conflitos, há oportunistas e empreendedores do bem e do mal como o fabricante do Marlboro com maconha que pode voltar a qualquer momento. Pouco depois daquele encontro com o veterano do Vietnã, levei um maço de Marlboro para o Brasil com um cigarro vietnamita que dei, sem prevenir, para meu pai. Estávamos num restaurante e depois da primeira tragada, ele olhou o cigarro, cheirou a fumaça: "Marlboro diferente este, tem um cheirinho gostoso de mato". Algumas pessoas na mesa sacaram e começaram a rir. A querida velha, muito esperta, percebeu algo errado e jogou o cigarro fora. Pena.
Anos depois, ele ainda perguntava se ainda existia aquele Marlboro especial.

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