quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Na opinião de Weiwei, a democracia chegará à China na década de 2020.

Demétrio Magnoli é doutor em Geografia Humana, Autor e co-autor de diversas obras, também é colunista de diversos periódicos, como a Revista Época, Estadão e a Folha de S. Paulo. 
Na chamada de um post recente, intitulado “As mentiras de Yoani Sánchez em 2012”, Yohandry anunciou o propósito de “narrar as falácias desta mulher, uma traiçoeira criação midiática”, com a finalidade de esclarecer “meus colegas de todo o mundo”, “alertando quem ainda possa estar confuso”. Yohandry Fontana provavelmente não existe. O nome de guerra serve como assinatura de um blog oficial, que surgiu como reação ao de Yoani para reproduzir as sentenças de propaganda e os insultos políticos fabricados pelo regime castrista. O curioso, quase onírico, é que Cuba é um país virtualmente sem internet: o blogueiro inventado pelo poder escreve para “colegas” internautas “de todo o mundo”, mas não para os cubanos comuns residentes na ilha. O totalitarismo dos Castro subsiste num espaço-tempo anterior às redes sociais. O cenário é radicalmente diverso na China, onde um regime totalitário tenta provar que pode sobreviver à revolução da informação.
Quando visitou o país, o criador do Facebook, Marck Zuckerberg, foi saudado pelo banner viral “Bem-vindo à China, fundador do website Erro 404”, difundido pelos blogueiros chineses. Fruto da eficácia negativa do Grande Firewall da China (GFC), a mensagem “Erro 404” alerta que o servidor não encontrou o endereço solicitado, repete-se em escala descomunal nas telas de computadores e celulares do país. O Escudo Dourado, nome oficial do GFC, encomendado pelo Ministério da Segurança Pública, começou a operar em 2003. As ambições do projeto ultrapassam largamente a simples censura: trata-se de avançar rumo à implantação de uma gigantesca base de dados analítica de textos e imagens publicados pelos usuários da rede virtual com tecnologias que abrangem reconhecimento facial e de voz. Continue lendo...
Totalitarismo é algo bem diferente de autoritarismo. O segundo ampara-se, exclusivamente, na força e se contenta em calar, prender ou eliminar opositores. O primeiro também se ampara na força, mas nutre a pretensão de persuadir a sociedade a acreditar no seu enredo sobre a História — ou seja, numa narrativa que o torna depositário de uma legitimidade transcedental. George Orwell explicou isso: “O Estado totalitário é, efetivamente, uma teocracia e sua casta dirigente, a fim de conservar sua posição, deve ser vista como infalível. Mas como, na prática, ninguém é infalível, torna-se frequentemente necessário rearranjar os eventos passados de modo a mostrar que este ou aquele erro não ocorreu ou que este ou aquele triunfo imaginário realmente aconteceu.” Eis o motivo pelo qual a política do totalitarismo demanda o controle sobre a linguagem empregada pelas pessoas. Não é trivial exercer tal controle na era da internet.
Os totalitarismos do século XX detinham o monopólio dos grandes meios de comunicação da época: o rádio, o cinema, a televisão. Os regimes de Stalin, Mussolini e Hitler tinham consciência do valor político das mídias de massa e empenharam-se no seu desenvolvimento tecnológico e no aprimoramento técnico e artístico das mensagens que difundiam. Contudo, as redes sociais da internet são intrinsecamente distintas das mídias eletrônicas tradicionais, pois todos os participantes podem operar como emissores de mensagens. Na China, o Twitter é proibido, mas serviços nacionais similares contam com mais de 200 milhões de usuários. Por meio deles, dezenas de milhares de microblogueiros formam a vanguarda da dissidência política, organizando protestos de rua e denunciando a corrupção oficial.
À sombra do “Erro 404”, desenvolve-se um infindável jogo de gato e rato entre o GFC e os internautas. Na esfera da tecnologia, o desafio de circundar a censura estimula a invenção de softwares de codificação e a criação de rotas alternativas para acesso a servidores bloqueados. Na esfera da linguagem, ilude-se o Grande Irmão pelo emprego do método da analogia e pelo uso em profusão de metáforas, alegorias, parábolas e termos homófonos. A ironia é uma companheira inseparável dos microblogueiros subversivos: segundo eles, sites e blogs não são “suprimidos”, mas “harmonizados”, numa referência à meta declarada do regime de produzir uma “Sociedade Socialista Harmoniosa”.
Ai Weiwei saltou a etapa da ironia, entregando-se ao sarcasmo. O artista plástico, consultor dos arquitetos que projetaram o estádio olímpico Ninho do Pássaro, tornou-se um dos mais notórios dissidentes chineses. Multado, encarcerado e espancado, ele não se “harmonizou”. Meses atrás, postou no Youtube um vídeo em que aparece dançando no “estilo Gangnam” e usando algemas. Antes disso, diante da instalação de 15 câmeras para o monitoramento policial de seus movimentos, conectou à internet a “weiweicam”, uma câmera que filma sem parar o cenário de seu quarto. “Acho que eles não sabem como lidar com alguém como eu e meio que desistiram de me gerenciar”, sugeriu em entrevista recente. O escárnio fere o totalitarismo ainda mais que a acusação racional ou a denúncia moral.
Na opinião de Weiwei, a democracia chegará à China na década de 2020. Entre os analistas ocidentais, vulgarizou-se o precário paralelo com a Coreia do Sul e Taiwan, que transitaram para a democracia no compasso da modernização econômica, da urbanização e da consolidação de uma classe média cosmopolita. De acordo com essa linha otimista de interpretação, a própria elite dirigente chinesa administrará uma transição política gradual, dissolvendo aos poucos os grilhões do sistema totalitário.
Tudo é possível. O certo é que não há precedentes adequados para orientar a análise. Entre as inúmeras singularidades históricas da China, a mais relevante encontra-se justamente na universalização das redes sociais ao abrigo de um Estado totalitário. O poder de Mao Tsetung não foi abalado pela maior crise de fome do século XX. Em contraste, o “Erro 404” tem o potencial de arrasar a fortaleza de seus sucessores.

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